Em As Viagens de Gulliver ( lançado em 1726 ), o escritor irlandês Jonathan Swift satirizou a relação dos povos da França e Inglaterra ao retratá-las como Blefuscu e Lilliput , respectivamente, era assim que o escritor criticava a política no começo do século XVIII. Na obra, enquanto o povo da rica e abundante Liliput agiu de forma traiçoeira contra Gulliver ( um claro alter-ego de Jonathan no livro), o povo de Blefuscu foi honesto, afetuoso e amistoso, mostrando a crítica ácida e política de Swift em relação a seus conterrâneos.
A obra inspirou vários projetos, de um curta-metragem dirigido pelo lendário Georges Méliès , um filme de animação lançado em 1939 dirigido por Dave Fleischer , "O Incrível Homem que Encolheu ( 1957)", dirigido por Jack Arnold, "Viagem Fantástica (1966)" de Richard Fleischer uma série animada dirigida pelos também lendários William Hanna e Joseph Barbera ( criadores de " Os Flintstones" ) , até uma adaptação lançada em 2010 estrelada por Jack Black que foi sucesso de público. Dentre os mais notáveis, cito filmes como Querida, encolhi as crianças (1983) e Homem Formiga (2015) que exploraram sob o viés da comédia e aventura a possibilidade fantástica de um humano ser reduzido a poucos centímetros de altura.
Em seu novo filme, Alexander Payne se inspira na obra de Swift , deixando o "gigante" Gulliver de lado e focando apenas nas duas ilhas do livro e em seus habitantes. O diretor e roteirista nos leva a história de Paul Safranek (Matt Damon), um trabalhador de classe média entusiasmado com a possibilidade de largar a profissão pouco rentável e o dia a dia monótono para ingressar em uma comunidade para os "pequenos" chamada Leisureland , onde poderia viver com bastante luxo ao lado da esposa, Audrey (Kristen Wiig). Sim, Leisureland é apresentada quase como uma espécie éden, onde a riqueza, a abundância, a saúde, a felicidades e a harmonia andam de mãos dadas. Ou seja, Lilliput é logo ali. O filme imagina uma sociedade em que humanos podem ser encolhidos para evitar superpopulação do planeta. Será que foi um bom negócio? Todos são felizes ? Os problemas acabaram?
Sobre o elenco, os melhores momentos do filme vêm através dos personagens coadjuvantes (que, curiosamente, não são norte-americanos) , destaque para a "novata" Hong Chau (Vício Inerente, Big Little Lies) que interpreta à faxineira vietnamita refugiada Ngoc Lan Tran, com igual honestidade , complexidade e muito carisma e, é de longe, uma das melhores coisas do filme. Aliás, não sei como ela foi esnobada nas premiações desse ano, pois merecia um prêmio. Christoph Waltz interpreta Dusan Mirkovic , o vizinho de Paul, "um estrangeiro excêntrico e falastrão", parece que Hollywood não deixará que ele se livre do estereótipo tão cedo, funcionando como um alívio cômico. Mesmo assim, Waltz continua brilhante, muito carismático, cínico e leve ao mesmo tempo. Esses dois personagens ajudam a sustentar o longa. Matt Damon ( o protagonista) encarna um personagem sensível e encantador e sua química com Hong Chau funciona muito bem.
Enquanto as escolhas da trilha sonora do diretor continuam ecléticas, o trabalho da designer de produção Stefania Cella e seu diretor de fotografia regular Phedon Papamichael são inestimáveis. Capturando muito bem aquele mundo em miniatura que , por vezes, chega a ser tão duro e cruel quanto o mundo real. Para Payne, é a natureza humana que nos mantém no caminho da extinção. Não há como evitá-lo porque, como espécie, não temos remédio. É neste conflito que o cineasta encontra seus melhores momentos cômicos, a tragédia para ele é a melhor fonte de comédia, como ele tinha mostrado em seus filmes anteriores (Sideways ( 2004) , é o melhor exemplo).
A arte também é um exercício de reflexão sobre a realidade, a forte crítica social no roteiro de Payne não é por mero acaso, se citei as duas ilhas da obra de Jonathan Swift lá no início dessa resenha, saiba que, se Leisureland / Lilliput funciona como uma clara referência ao "sonho americano", a favela / Blefuscu seria uma alusão a situação dos refugiados, do continente Africano, da América Latina e de outros países pobres. Nesse sentido, Blefuscu pode ser mesmo naquela pequena favela onde as famílias mexicanas passam seus dias assistindo a novelas latinas ou retransmissões de filmes estrelados por Cantinflas. E, não por acaso, é o local mais humano e afetuoso do longa.
No final, a história imaginada pelo diretor e roteirista Alexander Payne tem uma visão diferente para cada um, para alguns é confusa, uma propaganda socialista, uma crítica ao capitalismo, para outros é incrível. Assim é a filmografia do diretor, já que o mesmo, não se encaixa em qualquer gênero. Pra mim, bom ,depois de 4 anos longe da direção, Payne saiu da zona de conforto mais uma vez. "Nebraska" já tinha sido excelente, e seguia a linha do ótimo " Sideways", aqui o diretor está mais incisivo. Prova disso, a certa altura da projeção um personagem diz: "O crocodilo reinou por 200 milhões de anos com um cérebro do tamanho de uma noz, o Homo Sapiens o mais evoluído não conseguirá mais mil anos". Ou seja, Tudo que o homem tenta fazer de bom, ele transforma em armas.
🎬 : ★★★
Pequena Grande Vida (Downsizing – EUA – 2017)
Direção: Alexander Payne
Roteiro: Alexander Payne, Jim Taylor
Elenco: Matt Damon, Hong Chau, Christoph Waltz, Kristen Wig, Udo Kier, Rolf Lassgard, Jason Sudeikis, Maribeth Monroe, Neil Patrick Harris, Laura Palmer
Gênero: Ficção-Científica, Comédia, Drama
Duração: 135 min